O Declínio dos Deuses, Quando a Praça Tomou o Lugar do Púlpito

A voz que escapou das mãos dos donos

Há duas décadas, a palavra era um privilégio. Pertencia aos que tinham colunas nos jornais, cadeiras nas universidades, ou assinaturas nos programas de televisão. Eram eles, os intelectuais, os analistas, os formadores de opinião, que decidiam o que merecia ser discutido, como deveria ser discutido, e, acima de tudo, quem poderia discutir. A democracia da fala era uma ilusão bem comportada, todos podiam pensar, mas poucos podiam ser ouvidos.

Até que as redes sociais chegaram. E, de repente, a praça invadiu o templo.

O que para muitos é uma revolução democrática, para outros é um apocalipse cultural. As redes não só deram voz a quem sempre esteve mudo, elas arrancaram o microfone das mãos daqueles que, por séculos, falavam por e sobre os outros. E isso dói. Não é à toa que tantos intelectuais olham para o X, o TikTok ou o Instagram com o mesmo desdém com que um rei deposto olharia para a multidão que lhe tomou o trono.

O tempo em que a palavra era sagrada

Antes das redes, a autoridade intelectual era quase divina. Um artigo assinado por um filósofo, um comentário num editorial, uma análise de um crítico literário, esses textos não eram apenas opiniões, eram verdades temporárias. Quem os lia não os questionava, absorvia. A dissidência existia, claro, mas estava confinada a rodapés, cartas de leitores ou mesas de bar. O debate público era um jogo de xadrez onde só alguns podiam mover as peças.

A praça digital e a morte da reverência

As redes sociais não inventaram a opinião popular, mas deram-lhe um megafone. De repente, um jovem de periferia pode contestar um economista, uma mãe de classe média pode desmontar o argumento de um colunista, um anónimo com um fio de ironia pode viralizar e humilhar um político acostumado à impunidade retórica. O algoritmo não pergunta por títulos académicos ou currículos, ele premia o que engaja, o que provoca, o que fala direto.

Isso é democracia ou caos? Depende de quem pergunta. Para quem sempre teve o microfone, é uma invasão de bárbaros. Para quem sempre foi silenciado, é justiça poética.

O ressentimento dos deuses depostos

Não é coincidência que muitos intelectuais tratem as redes sociais com desprezo. O ódio não é à tecnologia, mas à perda de status. Antes, um intelectual podia escrever um artigo obscuro e ainda assim ser celebrado, hoje, se não conseguir explicar a sua ideia em 280 caracteres ou num vídeo de um minuto, será ignorado. A autoridade já não basta, é preciso conquistar a atenção, e isso exige humildade, clareza, até mesmo humor. Qualidades que nem todos estão dispostos a cultivar.

Há uma ironia nesse ressentimento, os mesmos que acusam as redes de superficialidade são muitas vezes incapazes de comunicar fora de suas torres de marfim. A verdade inconveniente é que o público não rejeita o conhecimento, rejeita o pedantismo.

O desafio, reinventar a autoridade sem perder a essência

O problema não é que a palavra tenha se democratizado, é que muitos intelectuais não souberam (ou não quiseram) democratizar a si mesmos. A autoridade hoje não se constrói com diplomas ou colunas nos jornais, mas com a capacidade de dialogar, de traduzir o complexo em acessível, de reconhecer que a sabedoria não é monopólio de ninguém.

O verdadeiro intelectual do século XXI não é aquele que desdenha das redes, mas aquele que as usa para ampliar o debate, não para se esconder atrás de um muro de erudição.

O chão comum como novo altar

As redes sociais não mataram a inteligência, apenas a tiraram do pedestal. E isso é, antes de tudo, um convite. Um convite para que o conhecimento deixe de ser uma torre isolada e se torne uma praça. Uma praça barulhenta, sim, às vezes suja, mas onde todos têm direito a falar. O desafio não é restaurar a antiga ordem, mas aprender a ouvir nas vozes da multidão não apenas ruído, mas também música.

Talvez a sabedoria, afinal, não esteja nos que falam do alto, mas nos que conseguem se fazer entender no meio da multidão.

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